A Pastoral Carcerária lançou o relatório A Pandemia da Tortura no cárcere.
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Dados Gerais
O relatório é fruto da análise de
casos e denúncias relacionadas à pandemia do coronavírus recebidas pela
Pastoral Carcerária Nacional ao longo do ano de 2020.
A Pastoral Carcerária Nacional
recebeu, entre 15 de março e 31 de outubro de 2020, 90 denúncias de
casos de tortura, envolvendo inúmeras violações de direitos em diversas
unidades prisionais espalhadas pelo país.
Para efeito de comparação, em 2019 a pastoral recebeu 53 casos neste mesmo período.
A violação ao direito à saúde da
população privada de liberdade foi central nas denúncias recebidas no
ano passado: cerca de 67 dos 90 casos(74,44%) dizem respeito à
negligência na prestação da assistência à saúde.
A violência e tortura também
persistem, ampliados pelo maior fechamento do cárcere devido à pandemia:
53 casos de tortura recebidos pela Pastoral Carcerária envolveram
agressões físicas, 52 diziam respeito à condições humilhantes e
degradantes de tratamento – tais como ausência de banho de sol, e 52
envolveram negligência na prestação da assistência material –
considerando, exemplificadamente, precário fornecimento de alimentação,
vestuário, produtos de higiene pessoal, produtos de limpeza, dentre
outros.
Artigos, relatos e análises
Além dos dados gerais, familiares,
ativistas, sobreviventes do sistema e pesquisadores da questão prisional
refletem em artigos presentes no relatório sobre o uso da pandemia como
forma de tortura, que fortalece a estrutura racista e violenta do
cárcere, bem como seu impacto nas diversas populações presas.
Racismo
Monique Cruz, pesquisadora da Justiça Global, em seu artigo A vontade de ser livre é inata e a luta pela liberdade é uma constante: reflexões sobre racismo, tortura e pandemia no Brasil, analisa como a população negra, pobre e periférica que lota a maioria das celas no país, é a mais punida com a pandemia.
“Falar de racismo, tortura e
pandemia está para além de dizer que o sistema de justiça criminal
brasileiro atua de maneira seletiva, punindo desproporcionalmente
pessoas não-brancas e pobres, especialmente as mulheres negras. Implica
dizer que há um processo histórico de separação das pessoas por raça e
gênero que dá base às estruturas da injustiça e da violação de direitos
humanos, que faz da tortura uma prática institucionalizada e socialmente
aceita”.
Mulheres presas
As integrantes do Grupo de Trabalho da Pastoral Carcerária Nacional para a questão da Mulher Presa, no artigo Tortura Contra as Mulheres Presas,
denunciam o sofrimento e isolamento vivido pelas mulheres encarceradas
no período da pandemia, no qual o cárcere se fechou mais ainda para a
sociedade.
“As mulheres presas apresentam maior vulnerabilidade e vivenciam questões delicadas
no cárcere, como a maternidade, a
gestação, o período puerperal, o alto índice de doenças (crônicas e
mentais), e a manutenção de vínculos familiares e afetivos não são
suficientes para que a atuação do sistema penal, seletivo e
criminalizador, modifique sua postura.
Familiares e membros de instituições que responderam a pesquisa também enviaram relatos,
dizendo que há muita dificuldade em obter notícias e informações das
mulheres que estão no cárcere nesse momento de pandemia, tendo em vista o
cancelamento das visitas presenciais. O que sempre é repassado é que
tudo está bem, ou que não podem passar informações. Essa falta de
diálogo acaba prejudicando e afetando tanto a pessoa que está atrás das
grades quanto a sua família, e como consequência prejudica a manutenção
do vínculo familiar e afeta a saúde mental”.
Povos originários
O artigo A tortura como prática sistemática contra os povos indígenas dentro e fora da prisão no Brasil,
escrito por integrantes do CIMI e do ITTC, resgata o histórico de
violências à que a população indígena está submetida, não só no cárcere
como na sociedade em geral, e como mal há informações sobre os povos
originários em privação de liberdade por parte dos órgãos oficiais neste
momento de pandemia:
“A invisibilidade dos povos
originários em privação de liberdade diante do contexto da pandemia do
COVID-19 acaba por se agravar já que pouco se sabe sobre a realidade das
contaminações da doença no sistema carcerário de todo o país e ao mesmo
tempo, evidencia a complexidade de mapear pessoas indígenas presas
afetadas pela pandemia. Tais fatores impedem a aplicação de seus
direitos especiais, como a possibilidade de cumprir pena em suas
próprias comunidades e a consideração de suas formas próprias de
resolução de conflitos”.
População LGBTI+
No texto “Onde o filho chora e a mãe não vê”: tortura e abandono de pessoas LGBTI+
privadas de liberdade em tempos de covid-19,
os integrantes da ONG SOMOS denunciam uma série de torturas e
violências que a população LGBTI+ sofrem sistematicamente dentro da
prisão. Com relatos de sobreviventes do sistema que dão vida a essa dor,
o artigo afirma que esse conjunto de violências foi potencializado
durante a pandemia:
“O abandono que essa população
experimenta é, assim, também institucional, situação que é agravada
ainda pela suspensão das visitas neste momento histórico de pandemia do
novo coronavírus (covid-19). Não podemos deixar de considerar, além
disso, que a falta de materiais, alimentação e outros insumos fornecidos
pela prisão e pelos familiares tem impacto na saúde dessas pessoas,
gerando, por isso, um contexto em que tortura, abandono, desproteção e
ausência de direitos estão intimamente conectados.
Esse quadro não será resolvido com
maior populismo punitivo e com recrudescimento de vagas no sistema
prisional. Precisamos de uma saída radical (que vai à raiz) e
revolucionária, que aponta para diminuição do Estado Penal e para o
desencarceramento. Nesse processo civilizatório, precisamos de maior
participação do conjunto da sociedade nas cadeias e de fortalecimento
dos serviços locais comunitários que oferecem respostas às pessoas
LGBTI+ presas e suas famílias, inclusive respostas que dizem respeito ao
debate sobre gênero e diversidade sexual no combate à todas as formas
de preconceito, discriminação e abandono”.
Sistema socioeducativo
No artigo Os 30 anos do ECA e a Pandemia de COVID-19 no Sistema Socioeducativo,
Fábio do Nascimento Simas, da Escola de Serviço Social Universidade
Federal Fluminense (UFF) analisa que as garantias do ECA para a
população menor de idade no sistema socioeducativo são constantemente
desrespeitadas, dando lugar à violência e tortura.
Apesar de algumas medidas positivas
no combate à pandemia, outras expandiram o escopo da tortura, como o
cancelamento das audiências de custódias presenciais, instrumento
fundamental para combater e denunciar a tortura.
“É importante destacar que no contexto da pandemia e as medidas sanitárias adotadas
pelos estados para evitar a
proliferação do coronavírus nas unidades socioeducativas entre os
adolescentes e profissionais, foi observado por MNPCT (2020) e MEPCT
(2020) baixo índice de testagem, falta de uma política sistemática de
isolamento social, condições insalubres das unidades e, sobretudo, a
permanência da superlotação, apesar da diminuição do número de
internados, cuja redução mais expressiva se refere às medidas de
semiliberdade”.
A pandemia nas prisões do mundo
Raissa Carla Belintani de Souza,
Advogada e mestra em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela
Universidade de São Paulo, é autora do artigo “A liberdade
como estratégia global de contenção e de cuidado”, no qual analisa como uma série de países lidou com a população prisional durante a pandemia.
Países como Filipinas, Índia,
Reino Unido, Itália, Espanha, México, Colômbia, dentre outros fazem
parte da reflexão, que no geral aponta para uma crise que só pode ser
resolvida com medidas de desencarceramento da população .
“Os fatos, bem como os dados,
evidenciam que a crise atual exige a redução da superlotação, a busca de
alternativas à prisão, a descriminalização do uso de drogas, a revisão
das práticas do sistema de justiça criminal e o desenvolvimento de
políticas de segurança pública que não sejam alicerçadas na violência
institucional, dentre outras medidas condutoras ao desencarceramento.
Todo o contexto do cárcere,
intencionalmente estruturado em ilegalidades e na falta de acesso a
direitos, tem os já enormes problemas ainda mais agravados por uma
situação de calamidade pública como a pandemia de COVID-19. É urgente
revisar as
estruturas institucionais, modificar
condutas e, primordialmente, desencarcerar. Afinal, não há como se ter
cuidado sem liberdade”.
Mecanismos de Controle
O cárcere sempre foi fechado à
sociedade; no entanto, com a pandemia, ele se fechou ainda mais,
dificultando que familiares e entidades que o fiscalizam (como a
Pastoral Carcerária) pudessem obter informações ou denúncias do que
ocorre atrás das grades.
O artigo Órgãos de controle externo enfrentam a incomunicabilidade imposta às pessoas presas e atuam para levar informação à sociedade, de autoria da Assessora Jurídica Sênior e Representante da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil, Sylvia Dias, analisa.
“Além disso, a pandemia deixou clara a
ausência de condições e preparo mínimo para se enfrentar uma grave
crise de saúde nas unidades prisionais, além de uma resposta
insatisfatória do Estado brasileiro, que concentrou parte de seus
esforços e recursos volumosos na compra de armamentos menos letais para
conter potenciais tumultos e motins nos presídios.
Para as e os familiares, a falta de
acesso às unidades prisionais para desfrutar de algumas horas em
companhia de seus entes queridos também acarreta graves consequências no
seu bem estar psíquico e emocional. (…)Não ter acesso à
unidade prisional representa não
somente não poder se comunicar, ver e estar próximo de seu familiar, mas
também não contar com informação sobre suas condições de detenção,
sobre o seu estado de saúde – em um momento no qual o adoecimento se
alastra – e sobre quais medidas estão sendo efetivamente implementadas
pelos gestores prisionais para preservar a saúde das pessoas presas e
prevenir a propagação do vírus”.
Relatos de um sobrevivente
A prisão marca todos que passam por ela. No texto Narrativas da tortura, de Luan
Cândido e Miriam Estefânia Dos Santos, ambos Membros da Frente Estadual
pelo Desencarceramento de MG, da Associação de Amigos e Familiares de
Pessoas em Privação de Liberdade e da Assessoria Popular Maria Felipa,
Luan conta sobre o tempo em que esteve na prisão, e os efeitos que isso
teve nele e nas pessoas próximas a ele.
“Ficar confinado num espaço limitado
por si só é tortura física e psicológica; corpo e mente adoecem
proporcionais ao tempo em que ficamos ociosos e improdutivos, seja na
cela individual ou coletiva.
Nessa pandemia, até você sentiu um
pouco o que é a tortura do confinamento… Passei três anos encarcerado,
sem qualquer atividade física ou intelectual, engordei, meu joelho
enfraqueceu, meu psicológico e intelectual estão abalados pela falta de
afeto e de comunicação com o mundo externo.
Minha família adoeceu, minha filha
desenvolveu depressão por causa da minha ausência e minha mãe teve
vários sintomas psicossomáticos de ansiedade. Na cadeia, tudo falta: água, espaço físico, paz, silêncio, comida de qualidade, produtos de
higiene, afeto, liberdade, trabalho, atendimento, remédio… Nos sentimos
indigentes e humilhados, é desumano e contraditório ficar anos em
situação de vulnerabilidade dentro de uma instituição do estado.
Se eu estou encarcerado, meu almoço chegou azedo, só tenho roupas rasgadas, não tenho
água, nem atendimento médico, nem remédio, nem produto de higiene, nem
trabalho, nem escola, está mais do que claro que eu estou vulnerável e
incapaz de ser regenerado ou de fazer algo por mim ou pela minha
família.
É uma tortura passar por tantas
privações e precariedades junto com centenas, aglomerados no mesmo
prédio, passando pelos mesmos problemas sem ter como reagir sem provocar
violência”.
Fonte: Site da Pastoral Carcerária Nacional