Criada para
exceções, FTIP virou rotina: no Rio Grande do Norte, ação deveria ser de 30
dias, mas durou 18 meses; no Pará, tem sido apresentada como solução
“A
FTIP [Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária] não está para tratar de um
fato isolado, ela está aqui para exercer um papel determinante que é
introduzir uma nova cultura dentro do cárcere”, declarou Helder Barbalho, Governador do Pará.
O
escândalo que tomou as manchetes do país há poucas semanas, escancarando a
tortura como prática da FTIP nas unidades prisionais do Pará, traz o
questionamento urgente sobre os mecanismos de gestão e disciplina em expansão
nos cárceres pelo país. A Ponte divulgou resultados do relatório do Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura que detalhava a situação de
penúria do sistema no Pará.
Antes
da criação da FTIP, em 2017, pelo então ministro da Justiça, Alexandre de
Moraes, a ocorrência de “crises” em uma unidade prisional poderia ensejar o
envio da Força Nacional, que atuava somente na parte externa dos presídios. A
estruturação da Força de Intervenção autorizou que os governos estaduais –
responsáveis pela gestão dos presídios – solicitassem, em “situações
extraordinárias”, apoio do governo federal para a realização dos serviços de guarda, vigilância e custódia
de presos.
Desde
então, diversas portarias do Ministério da Justiça e Segurança Pública
regulamentaram a forma de atuação da FTIP, bem como o envio das tropas para os
estados do Rio Grande do Norte, Roraima, Ceará, Amazonas e Pará.
Apesar
de não constar na lista do site do Depen (Departamento
Penitenciária Nacional), a estreia da FTIP se deu no Rio Grande do Norte, em janeiro de 2017,
apenas um dia depois da publicação da Portaria que autorizou a sua formação. A FTIP iniciou a intervenção
na Penitenciária de Alcaçuz, local em que, dias
antes, uma rebelião havia levado à morte de ao menos 26 pessoas.
A
portaria de envio da Força-Tarefa estabeleceu o prazo de 30 dias, mas os
agentes foram mantidos no território potiguar até agosto de 2018, sendo necessária
a edição de onze portarias de prorrogação do prazo de atuação. A FTIP atuou,
assim, por um período 18 vezes maior do que o inicialmente previsto.
A
primeira experiência de operação da FTIP explicitou, desde logo, que o “caráter
episódico” e “excepcional” cederia espaço para uma atuação duradoura. Não à
toa, pouco mais de 2 meses depois de deixar o Rio Grande do Norte, a FTIP foi
objeto de nova portaria, que criou uma Coordenadoria Institucional, responsável
por “planejamento, articulação, gestão e ação”, para a qual as secretarias
estaduais de administração penitenciária poderiam “subdelegar a gestão das
unidades prisionais” alvo de intervenção.
A
nova regulamentação muda radicalmente a proposta inicialmente prevista,
ampliando as atribuições que seriam realizadas em apoio aos governos de Estado,
para uma competência de substituição do poder de gestão do governo estadual
“pelo período que perdurar a ação”.
Três
semanas depois, em novembro de 2018, a Força-Tarefa realizou sua primeira
incursão na região norte do país, sendo chamada a atuar na Penitenciária
Agrícola de Monte Cristo (PAMC), Roraima. Prevista para durar 60 dias, a
operação foi objeto de três prorrogações desde então. Passado quase um ano do
início da operação, a FTIP permanece no local.
Desde
o início da intervenção, foram seis meses até a retomada das visitas
familiares. Quando equipe da Pastoral Carcerária Nacional esteve em Boa Vista,
em junho deste ano, a presença na FTIP na Penitenciária Agrícola de Monte
Cristo impediu a realização da visita religiosa na unidade. O isolamento dos
presídios sob intervenção é marca da atuação da Força-Tarefa, que tende a
restringir ou mesmo bloquear a entrada de famílias e entidades religiosas.
Em
Boa Vista, em conversa com a mãe de um preso da PAMC que acabara de fazer a
primeira visita do ano, depois de meses impedida de ter contato com seu filho,
ela relatou que, entre doenças, escassez de comida, dedos quebrados e
humilhações que ele havia sofrido, ela não reconheceu o filho. Depois de meses,
ele teve de convencer à própria mãe que naquele corpo abatido ele ainda
resistia em viver.
No
dia 25 de janeiro de 2019, no caldo da crise no estado do Ceará, foram
editadas três novas portarias pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública
tratando da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária. A
primeira ampliou as possibilidades de formação da Força-Tarefa. Se a portaria
inaugural, de 2017, previa a autorização para “situações extraordinárias de
grave crise no sistema penitenciário”, a nova determinação incluiu, dentre as
opções, a formação da Força-Tarefa “para treinamento e sobreaviso”,
distanciando da ocorrência de “crises” ou “distúrbios episódicos” para convocar
sua atuação.
Ademais,
a portaria ampliou as competências da FTIP, incluindo atividades de
“inteligência de segurança pública que tenham relação com o sistema prisional”.
Em seguida, outra portaria mobiliza a FTIP para treinamento e sobreaviso por
180 dias. Nesse mesmo dia, por fim, uma terceira portaria determina o envio da
Força-Tarefa para o Ceará. A criação oficial da FTIP na véspera de seu envio ao
Rio Grande do Norte e as alterações na sua estrutura logo antes das missões em
Roraima e no Ceará parecem indicar que o instrumento foi criado e flexibilizado
sob medida para determinadas incursões já previstas.
Como
amplamente noticiado, o estado do Ceará viveu uma onda de ataques nas ruas
no início do ano, o que foi acompanhado por uma reformulação de sua política
prisional, levada a cabo por Luis Mauro Albuquerque,
que, do seio da FTIP passou a Secretário de Administração Penitenciária do Rio
Grande Norte em 2017 e, em 2019, assumiu a pasta no Ceará.
A
equipe da Pastoral Carcerária Nacional realizou visitas nas unidades cearenses
em julho e agosto do ano corrente. Observaram uma uniformidade na gestão das
prisões em diferentes partes do estado, marcada por intenso rigor da disciplina
na custódia dos presos. Nessas unidades prisionais, reina um silêncio que
atordoa. Não é permitido conversar ou rezar em voz alta e durante parte
considerável do dia os presos são obrigados a ficar em posição de
“procedimento”: agachados, enfileirados, com as pernas cruzadas e as mãos atrás
da cabeça, que deve se manter baixa. Enquanto durar o “procedimento”, não são
permitidos movimentos, barulhos ou olhares para o lado, sob pena de castigo. Há
um olhar de terror por parte dos presos.
Os
cárceres são marcados também por extrema superlotação, ausência de colchões,
realização de transferências em massa de presos sem decisão judicial, falta de
atividades de estudo, trabalho ou lazer, restrição ao banho de sol e uso
indiscriminado de spray de pimenta. Foram diversos os presos que tiveram os
dedos quebrados por agentes integrantes da FTIP – técnica de tortura abertamente defendida por Luis Mauro
Albuquerque, ainda em 2017, em Natal.
Ao
passo que a Força-Tarefa pode ser encarregada da gestão das unidades prisionais
por um período de tempo, a FTIP assume parte, também, no processo de formação
dos agentes penitenciários estaduais. O Depen noticiou ocasiões em que agentes
da Força Tarefa realizaram treinamentos em conjunto com forças de segurança
estaduais, visando a uma padronização na atuação. No Pará, inclusive, o
coordenador da FTIP, Maycon Rottava, que chegou a ser afastado por decisão da
Justiça Federal por conta das denúncias de tortura, ministrou a aula
inaugural para 642 convocados do Curso de Formação para agentes
penitenciários.
O
treinamento garante que a prática de atuação e disciplinamento dos presos
típica da FTIP se mantenha mesmo que o período oficial de atuação da força seja
encerrado, pois já absorvido passa a ser reproduzido pelos agentes prisionais
do Estado no cotidiano das unidades prisionais. O Ceará é a demonstração clara
desta realização: a saída das tropas da Força de Intervenção do território
cearense não fez cessar esse modus operandi de atuação nos
presídios, detalhadamente descrito em relatório do Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura e em relatos de outras organizações.
Desde
então, a FTIP foi convocada a atuar nos estados do Amazonas e Pará, em maio e
julho de 2019, respectivamente, após os massacres ocorridos nas cidades
de Manaus e Altamira. Em Manaus, também, equipe da
Pastoral Carcerária Nacional teve a autorização para a realização de visita
vetada durante a intervenção no Instituto Penal Antônio Trindade (IPAT).
As
narrativas trazidas por presos que receberam o alvará de soltura ainda na
vigência da intervenção em Manaus foram gravíssimas. Relatos apontaram que os
presos foram forçados a raspar o cabelo, que ficaram dias sem banho de sol, com
falta de comida e ausência de água, obrigados a ficar constantemente em posição
de procedimento, “igual um feto no chão, acocorado, com as pernas encolhidas, a
mão no pescoço e a cabeça abaixada”.
Um integrante
da Pastoral ingressou na unidade acompanhando comitiva da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara Federal (CDHM). O relatório produzido pelo grupo
apontou que, mesmo em visita com os parlamentares, “a Pastoral Carcerária foi
impedida de conversar com os internos de forma reservada e com registro
fotográfico – o que, somado ao fato de que a Defensoria Pública e o Ministério
Público não visitaram os presos reservadamente após os massacres – agrava a
suspeita de tortura. Em resposta ao questionamento da Pastoral Carcerária, a
SEAP informou que a FTIP impossibilita esse tipo de fiscalização.”
Quanto
ao Pará, curioso notar que apesar da atuação da Força-Tarefa ter sido
legitimada por conta da ocorrência do massacre, os agentes não foram enviados à
cidade de Altamira, onde o conflito foi deflagrado, e sim ao Complexo Santa
Izabel, a centenas de quilômetros de distância. E os relatos
de tortura, que ensejaram a recomendação de apuração de tortura por parte do
Ministério Público Federal são de extrema gravidade.
Na
Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua, de acordo com documento elaborado
pela OAB-PA (Ordem dos Advogados do Brasil – Pará) após vistoria na unidade, os
agentes da FTIP foram acusados de obrigar as mulheres a ficarem apenas com suas
roupas íntimas, algumas completamente nuas, atiraram bombas dentro das celas e
spray de pimenta.
Todas
foram forçadas a ficar em posição de “procedimento” por horas, sendo que
algumas foram colocadas sentadas em um formigueiro apenas de calcinha e sutiã.
Consta que foram sete dias sem fazer higiene pessoal, com a comida vindo azeda
ou estragada e água para beber somente da torneira.Ainda houve relatos de
presas que menstruavam nos uniformes, pois a FTIP não permitia a entrada de
absorvente na unidade.
A
FTIP é composta por agentes penitenciários federais, estaduais e do Distrito
Federal, enviados pelos estados por conta de acordos firmados com a Força
Nacional de Segurança Pública. Nas palavras de Mauro Albuquerque, ao tratar do
envio de agentes penitenciários cearenses à força de atuação no Pará: “Eles vão
intervir, reestruturar o sistema, treinar os agentes de lá, implantar
procedimentos e contribuir com os irmãos paraenses. Na nossa crise de janeiro
tivemos ajuda de vários entes da federação, então nada mais justo agora do que
mandar nossos agentes cearenses treinados e capacitados na nova doutrina para
auxiliar nas reconstruções de outros sistemas”.
A
forma de atuação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária tende a se
espalhar, exportando as condições torturantes observadas nos presídios do Ceará
e do Pará para outros cantos do país. As transferências de presos sem
determinação judicial, as restrições ao banho de sol – que em diversos locais
não alcança nem as duas horas diárias garantidas até no regime mais gravoso de
cumprimento de pena -, a utilização rotineira de spray de pimenta e a prática
degradante do “procedimento” impregnaram o dia a dia de presídios em tantos
outros estados.
Diante
deste cenário, a Pastoral Carcerária, a Associação para a Prevenção da Tortura
(APT) o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Mecanismo
Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro e outras
organizações alertaram, em audiência frente a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, para a necessidade de extinção da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária.
Há
poucas semanas, Sérgio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública, externou
o desejo de aprofundar a utilização da Força de Intervenção, empregando-a “para uma atuação até mais preventiva”. Sob
responsabilidade direta do Ministério da Justiça, mais do que uma força de
intervenção, a FTIP se mostra cada vez mais como linha de frente de um novo
modelo de gestão dos presídios brasileiros marcado de ponta a ponta por
violações à integridade física e psíquica da população encarcerada.
Outro
lado
A Ponte procurou um Ministério da Justiça e
Segurança Pública para comentar os itens criticados pela Pastoral Carcerária e,
em nota, a pasta reiterou o discurso oficial de que a FTIP – que é chamada de
força de cooperação – tem caráter episódico, planejado para exercer coordenação
de atividades de guarda, vigilância, custódia de presos, com “objetivo
principal de humanizar a pena, garantindo o cumprimento da Lei de Execução
Penal, bem como atuar na redução brusca da criminalidade extramuros”.
Na
sequência da nota, o órgão cita exemplos da atuação da FTIP. “No Pará, após 90
dias de atuação, além da garantia da segurança para mais de 53 mil atendimentos
de saúde, 17 mil atendimentos jurídicos, aplicação de provas do Exame Nacional
para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), cursos
profissionalizantes, houve redução de 54,86% e 66,31% dos índices da
criminalidade nos meses de agosto e setembro, respectivamente. Houve também
impacto nos índices de agentes públicos assassinados. Nenhum homicídio de policial
foi registrado de agosto até hoje, em Belém e região Metropolitana, segundo a
Secretaria de Segurança Pública (Segup)”.
Por fim, o Ministério da Justiça e
Segurança Pública informa que, “nos casos que haja suspeitas de possíveis
irregularidades na atuação da FTIP, são instauradas sindicâncias a fim de
apurar as supostas denúncias. Caso sejam comprovados eventuais desvios de
conduta, os agentes serão devidamente afastados de suas funções e responderão
na forma da lei”, conclui.
(*)
Lucas Silva e Luisa Cytrynowicz da assessoria jurídica da Pastoral Carcerária
Nacional
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