sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Discurso do Papa aos participantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal


Ilustres Senhores e Senhoras, antes de tudo, quero pedir desculpas pelo atraso. Me desculpem, foi um erro de cálculo: dois grandes compromissos que se prolongaram … Aconteceu o contrário do que aconteceu no Livro de Josué: aí o sol voltou para trás; aqui o relógio, o sol, continuou para frente. desculpem, e obrigado por vossa paciência.
Saudo-vos cordialmente e, como em nosso encontro anterior, expresso a minha gratidão para o vosso serviço à sociedade e pela contribuição que oferecem ao desenvolvimento de uma justiça que respeite a dignidade e os direitos da pessoa humana. Gostaria de compartilhar com vocês algumas reflexões sobre questões que também interpelam a Igreja em sua missão de evangelização e serviço à justiça e à paz. Agradeço à professora Paola Severino por suas palavras.
SOBRE O ESTADO ATUAL DO DIREITO PENAL

Por várias décadas, o direito penal incorporou – especialmente a partir de contribuições de outras disciplinas – conhecimentos diversos sobre algumas questões relacionadas ao exercício da função sancionatória. Mencionei algumas delas no encontro anterior.
 No entanto, apesar dessa abertura epistemológica, o direito penal não conseguiu se preservar das ameaças que, em nossos dias, pairam sobre as democracias e a plena validade do Estado de Direito. Por outro lado, o direito penal geralmente negligencia os dados da realidade e, dessa maneira, assume a aparência de um conhecimento meramente especulativo.
Vejamos dois aspectos relevantes no contexto atual.
  1. A Idolatria do mercado. A pessoa frágil e vulnerável se vê indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, que se tornaram a regra absoluta ( Evangelii gaudium, 56; Laudato si, 56). Hoje, alguns setores econômicos exercem mais poder do que os próprios Estados (cfr. Laudato si, 196): uma realidade que resulta ainda mais evidente em tempos de globalização do capital especulativo. O princípio da maximização do lucro, isolado de qualquer outra consideração, leva a um modelo de exclusão – automático! – que ataca violentamente aqueles que sofrem no presente os seus custos sociais e econômicos, enquanto as gerações futuras são condenadas ao pagamento dos custos ambientais.

A primeira coisa que os juristas deveriam se perguntar hoje é o que podem fazer com seus conhecimentos para combater esse fenômeno, que coloca em risco as instituições democráticas e o próprio desenvolvimento da humanidade. Em termos concretos, o desafio atual para todo o  penalista é conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta, entre outras coisas, em encarceramento em massa, superlotação e tortura nas prisões, arbitrariedade e abusos das forças de segurança, expansão da esfera da pena, a criminalização dos protestos sociais, o abuso da prisão preventiva e o repúdio às garantias penais e processuais mais elementares.
  1. Os riscos do idealismo criminal. Um dos principais desafios atuais da ciência criminal é a superação da visão idealista que assimila o fato de ser realidade. A imposição de uma sanção não pode ser moralmente justificada com a suposta capacidade de fortalecer a confiança no sistema normativo e na expectativa de que cada indivíduo assuma um papel na sociedade e se comporte de acordo com o que se espera dele.
O direito penal, mesmo em suas correntes normativistas, não pode prescindir dos dados elementares da realidade, como aqueles que manifestam a operação concreta da função sancionadora. Qualquer redução dessa realidade, longe de ser uma virtude técnica, ajuda a ocultar as características mais autoritárias do exercício do poder.

O DANO SOCIAL DOS CRIMES ECONÔMICOS

Uma das omissões frequentes do direito penal, uma consequência da seletividade sancionadora, é a escassa ou nula atenção que os crimes dos mais poderosos recebem, em particular a macro-delinquência das empresas. Não estou exagerando com essas palavras. Aprecio que o vosso Congresso tenha levado esse assunto em consideração.
O capital financeiro global está na origem de crimes graves, não apenas contra a propriedade, mas também contra as pessoas e o meio ambiente. É responsável pelo crime organizado, entre outras coisas, pelo endividamento excessivo dos Estados e pela pilhagem dos recursos naturais de nosso planeta.
O direito penal não pode permanecer estranho à conduta em que, tirando proveito de situações assimétricas, uma posição dominante é explorada em detrimento do bem-estar coletivo. Isso acontece, por exemplo, quando os preços dos títulos da dívida pública são artificialmente reduzidos, através da especulação, sem se preocupar que isso influencie ou exacerbe a situação econômica de nações inteiras (cfr. Oeconomicae et pecuniariae quaestiones. Considerações sobre um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro, 17).
Trata-se de  delitos que têm a gravidade de crimes contra a humanidade, quando levam à fome, à pobreza, à migração forçada e à morte por doenças evitáveis, ao desastre ambiental e ao etnocídio dos povos indígenas.

A PROTEÇÃO LEGAL E PENAL DO MEIO AMBIENTE

É verdade que a resposta penal ocorre quando o crime foi cometido, que com ela o dano não é reparado nem a reiteração é evitada e que, raramente produz efeitos dissuasivos. Também é verdade que, devido à sua seletividade estrutural, a função de sanção geralmente recai sobre os setores mais vulneráveis. Também estou ciente de que há uma corrente punitivista que pretende resolver os mais diversos problemas sociais através do sistema penal.
Em lugar disso, um senso elementar de justiça imporia que alguns comportamentos, dos quais as empresas geralmente são responsáveis, não fiquem impunes. Em particular, todos aqueles que podem ser considerados “ecocídios”: a contaminação maciça do ar, dos recursos da terra e da água, a destruição em larga escala da flora e da fauna e qualquer ação capaz de produzir um desastre ecológico ou destruir um ecossistema. Devemos introduzir – estamos pensando nisso – no Catecismo da Igreja Católica o pecado contra a ecologia, o “pecado ecológico” contra a casa comum, porque uma obrigação está em jogo.
Nesse sentido, recentemente, os Padres sinodais da Região Pan-Amazônica propuseram definir o pecado ecológico como uma ação ou omissão contra Deus, contra o próximo, a comunidade e o meio ambiente. É um pecado contra as gerações futuras e se manifesta nos atos e hábitos de poluição e destruição da harmonia do meio ambiente, nas transgressões contra os princípios da interdependência e na quebra de redes de solidariedade entre criaturas (cfr. Catecismo da Igreja Católica, 340-344) [2].Como foi relatado em vossos trabalhos, “ecocídio” significa a perda, dano ou destruição de ecossistemas de um território específico, de modo que seu desfrute por parte dos habitantes tenha sido ou possa ser gravemente afetado. Esta é uma quinta categoria de crimes contra a paz, que deve ser reconhecida como tal pela comunidade internacional.
Nesta circunstância, e através de vocês, gostaria de apelar a todos os líderes e representantes do setor para que contribuam com seus esforços para garantir a proteção legal adequada de nossa casa comum.

SOBRE ALGUNS ABUSOS DO PODER SANCIONADOR

  1. uso indevido de prisão preventiva. Eu havia relatado com preocupação o uso arbitrário de detenção preventiva. Infelizmente, a situação piorou em várias nações e regiões, onde o número de prisioneiros sem condenação já ultrapassa cinquenta por cento da população carcerária. Esse fenômeno contribui para a deterioração das condições de detenção e é a causa de um uso ilícito das forças policiais e militares para esses fins [3]. A prisão preliminar, quando imposta sem a ocorrência de circunstâncias excepcionais ou por um período excessivo, afeta o princípio de que todo acusado deve ser tratado como inocente até que uma condenação final estabeleça sua culpa.

  1. O incentivo involuntário à violência. Em vários países, foram implementadas reformas da instituição de legítima defesa e foi feita uma tentativa de justificar crimes cometidos por agentes das forças de segurança como formas legítimas de cumprimento do dever [4]. É importante que a comunidade jurídica defenda os critérios tradicionais para impedir que a demagogia punitiva degenere em incentivo à violência ou no uso desproporcional da força. São comportamentos inadmissíveis em um estado de direito e, em geral, acompanham preconceitos racistas e desprezo por grupos socialmente marginalizados.

  1. A cultura do descarte e a do ódio. A cultura do descarte, combinada com outros fenômenos psicossociais difundidos nas sociedades de bem-estar social, está mostrando a séria tendência de degenerar em uma cultura de ódio. Infelizmente, não há episódios isolados, certamente necessitando de uma análise complexa, em que os problemas sociais de jovens e adultos explodem. Não é por acaso que algumas vezes reaparecem emblemas e ações típicas do nazismo. Confesso que, quando ouço algum discurso de alguma pessoa encarregada da ordem ou do governo, lembro dos discursos de Hiltler em ’34 e ’36, hoje. São ações típicas do nazismo que, com suas perseguições contra judeus, ciganos e pessoas de orientação homossexual, representam o modelo negativo por excelência de uma cultura do descarte e do ódio. Isso foi feito naquele tempo e essas coisas renascem hoje. Precisamos estar vigilantes, tanto na esfera civil quanto na eclesial, para evitar qualquer possível comprometimento – que se supõe involuntário – com essas degenerações.

  1. A manipulação da lei. Verifica-se periodicamente que se faça recurso a falsas acusações contra líderes políticos, apresentadas em conjunto pela mídia, adversários e órgãos judiciais colonizados [5]. Desse modo, com os instrumentos próprios da lei, a sempre necessária luta contra a corrupção é instrumentalizada para combater governos indesejados, reduzir os direitos sociais [6] e promover um sentimento antipolítico que beneficia aqueles que aspiram a exercer poder autoritário.
E, ao mesmo tempo, é curioso que o recurso a paraísos fiscais, um expediente que serve para ocultar todo tipo de crime, não seja percebido como uma questão de corrupção e crime organizado [7]. Da mesma forma, fenômenos maciços de apropriação de recursos públicos passam despercebidos ou são minimizados como se fossem meros conflitos de interesse. Convido todos a refletir sobre isso.

APELO À RESPONSABILIDADE 

Desejo  dirigir um convite a todos vocês, estudiosos do direito penal, e àqueles que, em diferentes papéis, são chamados a desempenhar funções relacionadas à aplicação do direito penal. Tendo em mente que o objetivo fundamental do direito penal é proteger os bens jurídicos mais importantes para a comunidade, toda a nomeçaõ e todas as tarefas nesta área sempre têm uma ressonância pública, um impacto na comunidade. Isso requer e ao mesmo tempo implica uma responsabilidade mais séria para o operador da justiça, em qualquer grau que seja, desde o juiz, o funcionário da chancelaria, até o agente da força pública.
Todas as pessoas chamadas para realizar uma tarefa nesta área deverão ter constantemente em mente, por um lado, o respeito à lei, cujas prescrições devem ser observadas com atenção e dever de consciência adequados à gravidade das consequências. Por outro lado, deve-se lembrar que a lei sozinha nunca pode alcançar os propósitos da função penal; ocorre que a sua aplicação deve também ter em vista o bem efetivo das pessoas em questão. Essa adaptação da lei à concretude de casos e pessoas é um exercício tão essencial quanto difícil.
Para que a função judicial penal não se torne um mecanismo cínico e impessoal, precisamos de pessoas equilibradas e preparadas, mas acima de tudo apaixonadas – apaixonadas! – da justiça, cientes do dever grave e da grande responsabilidade que eles desempenham. Somente assim, a lei – toda lei, não apenas a lei penal – não será um fim em si mesma, mas a serviço das pessoas envolvidas, sejam eles os autores dos crimes ou aqueles que foram ofendidos. Ao mesmo tempo, agindo como um instrumento de justiça substancial e não apenas formal, o direito penal poderá cumprir a tarefa de proteção real e efetiva dos bens legais essenciais da coletividade. E certamente devemos ir em direção a uma justiça restaurativa.

RUMO À JUSTIÇA RESTAURATIVA

Em todo crime, há uma parte ofendida e dois laços prejudicados: o do responsável pelo fato com a sua vítima e o mesmo com a sociedade. Afirmei que entre a punição e o crime existe uma assimetria [8] e que a realização de um mal não justifica a imposição de outro mal como resposta. É fazer justiça à vítima, não executar o agressor.
Na visão cristã do mundo, o modelo de justiça encontra uma encarnação perfeita na vida de Jesus, que, depois de ser tratado com desprezo e até com violência que o levou à morte, finalmente, em sua ressurreição, traz uma mensagem de paz , perdão e reconciliação. São valores difíceis de alcançar, mas necessários para o bem de todos. E retomo as palavras que a professora Severino disse sobre as prisões: as prisões devem sempre ter uma “janela”, ou seja, um horizonte, olhar para uma reintegração. E devemos, com isso, pensar profundamente sobre a maneira de administrar uma prisão, a maneira de semear a esperança de reintegração; e pensar se a penalidade é capaz de trazer essa pessoa para lá; e também o acompanhamento para isso. E repensar seriamente o ergastolo…
Nossas sociedades são chamadas a avançar em direção a um modelo de justiça fundado no diálogo, no encontro, porque, lá onde for possível  sejam restaurados os vínculos afetados pelo crime e reparados os danos que causou. Não acho que seja uma utopia, mas certamente é um grande desafio. Um desafio que todos devemos enfrentar se quisermos lidar com os problemas de nossa convivência civil de maneira racional, pacífica e democrática.
Queridos amigos, vos agradeço por três coisas: pela vossa dupla paciência: por esperar uma hora e, a outra paciência, por ouvir este longo discurso. E vos agradeço por este encontro. Obrigado. Garanto-lhe que continuarei perto de vocês neste árduo trabalho a serviço do homem na área da justiça. Não há dúvida de que, para aqueles que entre vós são chamados a viver a vocação cristã do seu próprio batismo, este é um campo privilegiado de animação evangélica do mundo. Todos, mesmo aqueles que não são cristãos entre vocês, precisamos da ajuda de Deus, fonte de toda razão e justiça. Invoco para cada um de vocês, através da intercessão da Virgem Mãe, a luz e a força do Espírito Santo. Eu vos abençoo de coração e, por favor, peço que rezem por mim. Obrigado.
 [1] Cf. discurso à Delegação da Associação Internacional de Direito Penal, 23 de outubro de 2014.
[2] Cf. Documento final do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral, 26 de outubro de 2019, 82.
[3] Cf. discurso na Delegação da Associação Internacional de Direito Penal, 23 de outubro de 2014.
[4] Cf. Discurso do Santo Padre Francisco à Delegação da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, 17 de dezembro de 2018.
[5] Cf. Homilia, 17 de maio de 2018. L’Osservatore Romano (17 de maio de 2018).
[6] Cf. Discurso na Cúpula dos Juízes Pan-Americanos de Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, 4 de junho de 2019.
 [7] Oeconomicae et pecuniariae quaestiones. Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro, 30.
 [8] Cf. Carta aos participantes do XIX Congresso Internacional da Associação Internacional de Direito Penal e do III Congresso da Associação Latino-Americana de Direito Penal e Criminologia, 30 de maio de 2014.

*Pastoral Carcerária Nacional

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Missa da Misericórdia (fotos)

Para encerrar o ano de 2019, foi realizada mais uma missa da misericórdia, na Catedral Metropolitana de Juiz de Fora, com aproximadamente 50 presos, entre homens e mulheres. A celebração foi conduzida pelo Vigário Episcopal da caridade, padre Dondici e concelebrada pelo padre Anchieta e o assessor eclesiástico da pastoral carcerária, padre Welington. Depois da missa, os encarcerados puderam almoçar com seus familiares.

Segue abaixo, as fotos da missa:
Fotos: Janslúcia Vieira ( assessoria de comunicação Catedral)


































quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Missa da Misericórdia acontece no próximo domingo

A Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Juiz de Fora, em parceria com a Vara de Execução Penal da Comarca de Juiz de Fora, promove a missa da misericórdia, uma celebração junto com os encarcerados.  A missa acontece dia 17 de novembro, às 10 horas da manhã, na Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Aproximadamente 50 presos, entre homens e mulheres, participarão da celebração, vindos do Centro de Remanejamento do Sistema Prisional (Ceresp) e da penitenciária.
O Vigário Episcopal da Caridade, padre Geraldo Dondici será o presidente da celebração, que será concelebrada pelo pároco da Catedral, padre Anchieta e pelo assessor eclesiástico da Pastoral Carcerária, padre Welington. Os diáconos Nivaldo Rodrigues, assessor da pastoral, e Jorge Lucas da Comunidade Magnifíca, também estarão presentes.
A missa da misericórdia entra em consonância com a Jornada Mundial dos Pobres, que está na terceira edição e foi convocada por Papa Francisco no encerramento do Ano da Misericórdia, em 2016. O papa salienta a solidariedade humana e a boa vontade para com os pobres e oprimidos.
O assessor eclesiástico, padre Welington ressalta a importância da missa para a sociedade. “É um momento de unir o preso com a sociedade, aproximar o preso da benção, e fazer com que cresça o aspecto da fé, tanto no preso, tanto na sociedade, para que aconteça a ressocialização”.
Logo após a missa, os presos vão almoçar com suas famílias, no salão da Catedral.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

III ENCONTRO ESTADUAL DA PCR PARA QUESTÃO DA MULHER PRESA DE MG DEBATE DESENCARCERAMENTO

A Diocese de Caratinga, na cidade de Manhumirim, sediou o III Encontro Estadual da Pastoral Carcerária para Questão da Mulher Presa de Minas Gerais. Estavam presentes 15 pessoas, e cinco dioceses do Estado foram representadas.
Rosilda Ribeiro, coordenadora nacional para a questão da Mulher presa, estava presente. Ana Lúcia dos Santos, Aparecida Moreira e Maria de Lourdes Oliveira, da coordenação estadual de MG, também participaram.
Um dos principais temas debatidos foi a Agenda Nacional pelo Desencarceramento. Os 10 pontos do documentos foram apresentados, seguidos por um debate sobre esses pontos.
Também se ressaltou que a Agenda não é um documento da Pastoral Carcerária: movimentos Sociais, outras Pastorais, ONGs e outros parceiros que tem um compromisso com o desencarceramento e o mundo sem cárceres também assinam a Agenda.
Outro tema foi os efeitos que o encarceramento tem nas famílias e a articulação de familiares no estado. Os familiares de presos de MG tem se organizado cada vez mais, em caminhada junto com a PCr e com a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Estado.
As Regras de Bangkok, que focam na necessidade de considerar as distintas necessidades das mulheres presas, também foram debatidas, e que citamos as crianças precisam ter um lugar seguro quando sua mãe vai presa, pois o direito da criança precisa ser respeitado.
Por fim, também discutiu-se as APACs no Estado. Segundo Rosilda Ribeiro, que além de participar do encontro visitou presídios, o evento foi importante.
“Visitar as prisões foi bastante importante para reafirmar que cárcere não é lugar de gente. As mulheres encarceradas estão (sobre)vivendo num ambiente insalubre e violador. Elas tem muitas dores que a medicina não consegue explicar, pois são dores da alma que afeta todo corpo, e tomam muito remédio para dormir”.
Nesse sentido, segundo a coordenadora, é fundamental que “ cada vez mais nos sentimos obrigados a não desistir da luta. E quem estava presente no encontro são pessoas empenhadas na luta pelo desencarceramento”.
** Fonte: Pastoral Carcerária Nacional

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Artigo | Força-tarefa de Intervenção é modelo brutal de gestão dos presídios

Criada para exceções, FTIP virou rotina: no Rio Grande do Norte, ação deveria ser de 30 dias, mas durou 18 meses; no Pará, tem sido apresentada como solução



Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária encerrando as atividades em presídio de Manaus | Foto: Divulgação/Depen


“A FTIP [Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária] não está para tratar de um fato isolado, ela está aqui para exercer um papel determinante que é introduzir uma nova cultura dentro do cárcere”, declarou Helder Barbalho, Governador do Pará.
O escândalo que tomou as manchetes do país há poucas semanas, escancarando a tortura como prática da FTIP nas unidades prisionais do Pará, traz o questionamento urgente sobre os mecanismos de gestão e disciplina em expansão nos cárceres pelo país. A Ponte divulgou resultados do relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura que detalhava a situação de penúria do sistema no Pará.
Antes da criação da FTIP, em 2017, pelo então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, a ocorrência de “crises” em uma unidade prisional poderia ensejar o envio da Força Nacional, que atuava somente na parte externa dos presídios. A estruturação da Força de Intervenção autorizou que os governos estaduais – responsáveis pela gestão dos presídios – solicitassem, em “situações extraordinárias”, apoio do governo federal para a realização dos serviços de guarda, vigilância e custódia de presos.
Desde então, diversas portarias do Ministério da Justiça e Segurança Pública regulamentaram a forma de atuação da FTIP, bem como o envio das tropas para os estados do Rio Grande do Norte, Roraima, Ceará, Amazonas e Pará. 
Apesar de não constar na lista do site do Depen (Departamento Penitenciária Nacional), a estreia da FTIP se deu no Rio Grande do Norte, em janeiro de 2017, apenas um dia depois da publicação da Portaria que autorizou a sua formação. A FTIP iniciou a intervenção na Penitenciária de Alcaçuz, local em que, dias antes, uma rebelião havia levado à morte de ao menos 26 pessoas.
A portaria de envio da Força-Tarefa estabeleceu o prazo de 30 dias, mas os agentes foram mantidos no território potiguar até agosto de 2018, sendo necessária a edição de onze portarias de prorrogação do prazo de atuação. A FTIP atuou, assim, por um período 18 vezes maior do que o inicialmente previsto.
A primeira experiência de operação da FTIP explicitou, desde logo, que o “caráter episódico” e “excepcional” cederia espaço para uma atuação duradoura. Não à toa, pouco mais de 2 meses depois de deixar o Rio Grande do Norte, a FTIP foi objeto de nova portaria, que criou uma Coordenadoria Institucional, responsável por “planejamento, articulação, gestão e ação”, para a qual as secretarias estaduais de administração penitenciária poderiam “subdelegar a gestão das unidades prisionais” alvo de intervenção. 
A nova regulamentação muda radicalmente a proposta inicialmente prevista, ampliando as atribuições que seriam realizadas em apoio aos governos de Estado, para uma competência de substituição do poder de gestão do governo estadual “pelo período que perdurar a ação”.
Três semanas depois, em novembro de 2018, a Força-Tarefa realizou sua primeira incursão na região norte do país, sendo chamada a atuar na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC), Roraima. Prevista para durar 60 dias, a operação foi objeto de três prorrogações desde então. Passado quase um ano do início da operação, a FTIP permanece no local.
Desde o início da intervenção, foram seis meses até a retomada das visitas familiares. Quando equipe da Pastoral Carcerária Nacional esteve em Boa Vista, em junho deste ano, a presença na FTIP na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo impediu a realização da visita religiosa na unidade. O isolamento dos presídios sob intervenção é marca da atuação da Força-Tarefa, que tende a restringir ou mesmo bloquear a entrada de famílias e entidades religiosas.
Em Boa Vista, em conversa com a mãe de um preso da PAMC que acabara de fazer a primeira visita do ano, depois de meses impedida de ter contato com seu filho, ela relatou que, entre doenças, escassez de comida, dedos quebrados e humilhações que ele havia sofrido, ela não reconheceu o filho. Depois de meses, ele teve de convencer à própria mãe que naquele corpo abatido ele ainda resistia em viver.
No dia 25 de janeiro de 2019, no caldo da crise no estado do Ceará, foram editadas três novas portarias pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública tratando da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária. A primeira ampliou as possibilidades de formação da Força-Tarefa. Se a portaria inaugural, de 2017, previa a autorização para “situações extraordinárias de grave crise no sistema penitenciário”, a nova determinação incluiu, dentre as opções, a formação da Força-Tarefa “para treinamento e sobreaviso”, distanciando da ocorrência de “crises” ou “distúrbios episódicos” para convocar sua atuação.
Ademais, a portaria ampliou as competências da FTIP, incluindo atividades de “inteligência de segurança pública que tenham relação com o sistema prisional”. Em seguida, outra portaria mobiliza a FTIP para treinamento e sobreaviso por 180 dias. Nesse mesmo dia, por fim, uma terceira portaria determina o envio da Força-Tarefa para o Ceará. A criação oficial da FTIP na véspera de seu envio ao Rio Grande do Norte e as alterações na sua estrutura logo antes das missões em Roraima e no Ceará parecem indicar que o instrumento foi criado e flexibilizado sob medida para determinadas incursões já previstas.
Como amplamente noticiado, o estado do Ceará viveu uma onda de ataques nas ruas no início do ano, o que foi acompanhado por uma reformulação de sua política prisional, levada a cabo por  Luis Mauro Albuquerque, que, do seio da FTIP passou a Secretário de Administração Penitenciária do Rio Grande Norte em 2017 e, em 2019, assumiu a pasta no Ceará.
A equipe da Pastoral Carcerária Nacional realizou visitas nas unidades cearenses em julho e agosto do ano corrente. Observaram uma uniformidade na gestão das prisões em diferentes partes do estado, marcada por intenso rigor da disciplina na custódia dos presos. Nessas unidades prisionais, reina um silêncio que atordoa. Não é permitido conversar ou rezar em voz alta e durante parte considerável do dia os presos são obrigados a ficar em posição de “procedimento”: agachados, enfileirados, com as pernas cruzadas e as mãos atrás da cabeça, que deve se manter baixa. Enquanto durar o “procedimento”, não são permitidos movimentos, barulhos ou olhares para o lado, sob pena de castigo. Há um olhar de terror por parte dos presos.
Os cárceres são marcados também por extrema superlotação, ausência de colchões, realização de transferências em massa de presos sem decisão judicial, falta de atividades de estudo, trabalho ou lazer, restrição ao banho de sol e uso indiscriminado de spray de pimenta. Foram diversos os presos que tiveram os dedos quebrados por agentes integrantes da FTIP – técnica de tortura abertamente defendida por Luis Mauro Albuquerque, ainda em 2017, em Natal.
Ao passo que a Força-Tarefa pode ser encarregada da gestão das unidades prisionais por um período de tempo, a FTIP assume parte, também, no processo de formação dos agentes penitenciários estaduais. O Depen noticiou ocasiões em que agentes da Força Tarefa realizaram treinamentos em conjunto com forças de segurança estaduais, visando a uma padronização na atuação. No Pará, inclusive, o coordenador da FTIP, Maycon Rottava, que chegou a ser afastado por decisão da Justiça Federal por conta das denúncias de tortura, ministrou a aula inaugural para 642 convocados do Curso de Formação para agentes penitenciários.
O treinamento garante que a prática de atuação e disciplinamento dos presos típica da FTIP se mantenha mesmo que o período oficial de atuação da força seja encerrado, pois já absorvido passa a ser reproduzido pelos agentes prisionais do Estado no cotidiano das unidades prisionais. O Ceará é a demonstração clara desta realização: a saída das tropas da Força de Intervenção do território cearense não fez cessar esse modus operandi de atuação nos presídios, detalhadamente descrito em relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e em relatos de outras organizações.
Desde então, a FTIP foi convocada a atuar nos estados do Amazonas e Pará, em maio e julho de 2019, respectivamente, após os massacres ocorridos nas cidades de Manaus e Altamira. Em Manaus, também, equipe da Pastoral Carcerária Nacional teve a autorização para a realização de visita vetada durante a intervenção no Instituto Penal Antônio Trindade (IPAT).
As narrativas trazidas por presos que receberam o alvará de soltura ainda na vigência da intervenção em Manaus foram gravíssimas. Relatos apontaram que os presos foram forçados a raspar o cabelo, que ficaram dias sem banho de sol, com falta de comida e ausência de água, obrigados a ficar constantemente em posição de procedimento, “igual um feto no chão, acocorado, com as pernas encolhidas, a mão no pescoço e a cabeça abaixada”.
Um integrante da Pastoral ingressou na unidade acompanhando comitiva da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal (CDHM). O relatório produzido pelo grupo apontou que, mesmo em visita com os parlamentares, “a Pastoral Carcerária foi impedida de conversar com os internos de forma reservada e com registro fotográfico – o que, somado ao fato de que a Defensoria Pública e o Ministério Público não visitaram os presos reservadamente após os massacres – agrava a suspeita de tortura. Em resposta ao questionamento da Pastoral Carcerária, a SEAP informou que a FTIP impossibilita esse tipo de fiscalização.”
Quanto ao Pará, curioso notar que apesar da atuação da Força-Tarefa ter sido legitimada por conta da ocorrência do massacre, os agentes não foram enviados à cidade de Altamira, onde o conflito foi deflagrado, e sim ao Complexo Santa Izabel, a centenas de quilômetros de distância. E os relatos de tortura, que ensejaram a recomendação de apuração de tortura por parte do Ministério Público Federal são de extrema gravidade
Na Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua, de acordo com documento elaborado pela OAB-PA (Ordem dos Advogados do Brasil – Pará) após vistoria na unidade, os agentes da FTIP foram acusados de obrigar as mulheres a ficarem apenas com suas roupas íntimas, algumas completamente nuas, atiraram bombas dentro das celas e spray de pimenta.
Todas foram forçadas a ficar em posição de “procedimento” por horas, sendo que algumas foram colocadas sentadas em um formigueiro apenas de calcinha e sutiã. Consta que foram sete dias sem fazer higiene pessoal, com a comida vindo azeda ou estragada e água para beber somente da torneira.Ainda houve relatos de presas que menstruavam nos uniformes, pois a FTIP não permitia a entrada de absorvente na unidade.
A FTIP é composta por agentes penitenciários federais, estaduais e do Distrito Federal, enviados pelos estados por conta de acordos firmados com a Força Nacional de Segurança Pública. Nas palavras de Mauro Albuquerque, ao tratar do envio de agentes penitenciários cearenses à força de atuação no Pará: “Eles vão intervir, reestruturar o sistema, treinar os agentes de lá, implantar procedimentos e contribuir com os irmãos paraenses. Na nossa crise de janeiro tivemos ajuda de vários entes da federação, então nada mais justo agora do que mandar nossos agentes cearenses treinados e capacitados na nova doutrina para auxiliar nas reconstruções de outros sistemas”.
A forma de atuação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária tende a se espalhar, exportando as condições torturantes observadas nos presídios do Ceará e do Pará para outros cantos do país. As transferências de presos sem determinação judicial, as restrições ao banho de sol – que em diversos locais não alcança nem as duas horas diárias garantidas até no regime mais gravoso de cumprimento de pena -, a utilização rotineira de spray de pimenta e a prática degradante do “procedimento” impregnaram o dia a dia de presídios em tantos outros estados.
Diante deste cenário, a Pastoral Carcerária, a Associação para a Prevenção da Tortura (APT) o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro e outras organizações alertaram, em audiência frente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a necessidade de extinção da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária.
Há poucas semanas, Sérgio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública, externou o desejo de aprofundar a utilização da Força de Intervenção, empregando-a “para uma atuação até mais preventiva”. Sob responsabilidade direta do Ministério da Justiça, mais do que uma força de intervenção, a FTIP se mostra cada vez mais como linha de frente de um novo modelo de gestão dos presídios brasileiros marcado de ponta a ponta por violações à integridade física e psíquica da população encarcerada.
Outro lado
Ponte procurou um Ministério da Justiça e Segurança Pública para comentar os itens criticados pela Pastoral Carcerária e, em nota, a pasta reiterou o discurso oficial de que a FTIP – que é chamada de força de cooperação – tem caráter episódico, planejado para exercer coordenação de atividades de guarda, vigilância, custódia de presos, com “objetivo principal de humanizar a pena, garantindo o cumprimento da Lei de Execução Penal, bem como atuar na redução brusca da criminalidade extramuros”.
Na sequência da nota, o órgão cita exemplos da atuação da FTIP. “No Pará, após 90 dias de atuação, além da garantia da segurança para mais de 53 mil atendimentos de saúde, 17 mil atendimentos jurídicos, aplicação de provas do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), cursos profissionalizantes, houve redução de 54,86% e 66,31% dos índices da criminalidade nos meses de agosto e setembro, respectivamente. Houve também impacto nos índices de agentes públicos assassinados. Nenhum homicídio de policial foi registrado de agosto até hoje, em Belém e região Metropolitana, segundo a Secretaria de Segurança Pública (Segup)”.

Por fim, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informa que, “nos casos que haja suspeitas de possíveis irregularidades na atuação da FTIP, são instauradas sindicâncias a fim de apurar as supostas denúncias. Caso sejam comprovados eventuais desvios de conduta, os agentes serão devidamente afastados de suas funções e responderão na forma da lei”, conclui.
(*) Lucas Silva e Luisa Cytrynowicz da assessoria jurídica da Pastoral Carcerária Nacional