quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O LUGAR DO ENCARCERAMENTO NA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

 Do CIMI

Este artigo tem como objetivo visibilizar a questão do tratamento penal e prisional reservado às pessoas indígenas no Brasil. A ideia é situar o cárcere como um espaço intrinsecamente violento na medida em que a prisão é utilizada pelo Estado como forma de controle e contenção de populações específicas, como negras e indígenas.

No caso dos povos indígenas, isso se delineia de forma que os processos de criminalização a que estão submetidos, principalmente por conta de acusações por condutas relacionadas a drogas, ao patrimônio ou, até mesmo, contra a vida, costumam estar fortemente conectados à desigualdade social que enfrentam diariamente no país, a qual, por sua vez, se intensifica primordialmente pela demora do Estado brasileiro na solução dos conflitos pela demarcação das terras indígenas.

Iniciamos esse texto apresentando uma informação pouquíssimo difundida, mas de um episódio que ouvimos muito falar nas mídias já no início do ano de 2017: durante o massacre de 56 pessoas presas na rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), localizado no estado do Amazonas, o Ministério Público Federal (MPF) identificou que dentre elas cinco pessoas mortas eram indígenas. Ao mesmo tempo, o governo do estado do Amazonas negou informação, afirmando que nenhuma pessoa indígena teria morrido ou teria sofrido lesões durante a rebelião – essa gravíssima situação é tema de uma Ação Civil Pública (ACP) em tramitação na Justiça Federal do Amazonas sob o número: 10004827020174013200.

Assim, este episódio do massacre em Manaus e da disputa da narrativa sobre o fato de haver ou não indígenas presos ali, nos parece significativo para iniciarmos uma reflexão sobre a invisibilidade e a ausência de direitos que pessoas presas estão submetidas frente ao Estado; o que, por sua vez, se torna ainda mais escancarado quando focamos um olhar direto ao encarceramento de pessoas indígenas.

Uma primeira reflexão essencial e que igualmente nos levou ao levantamento dos dados sobre pessoas indígenas presas via Lei de Acesso à informação (LAI), realizado pelo Instituto das Irmãs de Santa Cruz (IISC) em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que apresentaremos no decorrer do texto, é a identificação indígena. Observa-se que nem sempre estas pessoas são identificadas pelo sistema de justiça criminal como indígenas, porque não foram perguntados, porque não têm espaço/informação para exercer o direito à autodeclaração ou porque temem qualquer forma de repressão por se identificarem como indígenas.

Sem a devida identificação, elas estão, portanto, sujeitas a mortes invisíveis frente ao Estado – sejam estas mortes como as que de fato ocorreram durante o massacre em Manaus ou mortes simbólicas de indígenas presos condenados a penas altíssimas e que ficam completamente esquecidos nas prisões brasileiras.

Segundo o levantamento realizado via LAI já mencionado, no ano de 2019 havia aproximadamente 1.080 indígenas em situação de prisão no Brasil, sendo 1.017 homens e 63 mulheres. Os dados levantados também indicam que os estados com maiores taxas de encarceramento de pessoas indígenas eram respectivamente Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Ceará.

O mesmo levantamento apurou que entre os anos de 2017 e 2019, o encarceramento de pessoas indígenas no Brasil aumentou cerca de 45%. Dentre os dados disponíveis, contabiliza-se mais de 37 povos indígenas representados no sistema prisional no ano de 2019. No entanto, estimamos que este número pode ser muito maior, já que apenas nove estados da federação forneceram informação sobre a etnia ou o povo a que a pessoa indígena presa pertencia.

Relembramos também que foi no mês de junho de 2019, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução 287, que passou a estabelecer procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do poder Judiciário. Esta Resolução, portanto, diz respeito ao processo penal e à execução penal brasileira de pessoas indígenas.

A Resolução, em seu início, enumera legislações nacionais e internacionais que resguardam direitos das pessoas indígenas e que devem ser somadas no que se refere à proteção e garantia dos direitos daqueles e daquelas que respondam a processo criminal no Brasil; são elas: a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras), o Estatuto do Índio (Lei 6001/1973) e também a Lei 13.769/2018 (dispõe sobre a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e a disciplina do regime de cumprimento de pena privativa de liberdade).

Embora entendamos que se trata de uma normativa relevante na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil e que demarca alguma visibilidade para pessoas indígenas presas ou sobreviventes do sistema prisional, a Resolução se encontra, como a maior parte de nossas leis, distante da realidade dos povos indígenas no Brasil e requer esforços para sua efetiva implementação.

É importante ressaltar que a utilização da prisão como principal resposta punitiva não é óbvia, não corresponde à cultura de vários povos indígenas no Brasil e no mundo, nem é a solução prioritária prevista em lei. A cruel realidade vivida pelo sistema prisional brasileiro deveria nos obrigar a investigar e dialogar com os povos indígenas brasileiros para fomentar a utilização de suas próprias formas de resolução de conflitos.

Observa-se que para muitos povos, ter uma pessoa de sua comunidade presa pode vir a gerar uma ruptura/conflito entre a pessoa presa com a própria comunidade a que pertence e com sua cosmologia, gerando, muitas vezes, impactos graves e imprevisíveis dentro dos conceitos coletivos, da cultura e organização social.

Neste sentido, em algumas aldeias indígenas, quando lideranças religiosas ou da comunidade são presas, pode-se criar dificuldades ou até mesmo verdadeiros impedimentos, por exemplo, à realização de rituais importantes e essenciais à existência diária destes povos. As variáveis possíveis do impacto da imposição de prisão a um membro de uma comunidade indígena são tantas que, em boa hora, a Resolução também prevê a realização de um laudo antropológico no processo criminal.

Por estas e outras razões, a prisão de uma pessoa indígena gera consequências individuais e também coletivas na perspectiva de sua cultura e vivência perante suas comunidades – trata-se de uma dupla punição. Por isso, a Resolução 287 e as demais legislações mencionadas neste artigo entendem que a prisão deve ser uma resposta punitiva excepcionalíssima, devendo-se levar em consideração as formas próprias de resolução de conflitos dos povos indígenas, dando-se, em qualquer hipótese, preferência a formas alternativas ao cárcere.

Por outro lado, este entendimento, da excepcionalidade da prisão para pessoas indígenas não é compartilhado pela maioria das pessoas operadoras de direito no Brasil, as quais dificilmente têm conhecimento da diversidade dos povos e, sobretudo, dos direitos específicos que a lei os reserva.

Reduzir os dados da violência institucional vivenciada por pessoas indígenas presas no contexto atual do Brasil é, sem dúvida, desencarcerar. Porém, enquanto estão presas, há a necessidade de se garantir à pessoa indígena acesso à assistência material, de saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, a qual também deverá ser prestada conforme as especificidades culturais de cada povo. Isto inclui, igualmente, o fornecimento de alimentação em acordo com seus costumes, bem como a presença dos pajés e dos líderes espirituais nos estabelecimentos prisionais, assim como reconhecer os laços de parentesco reconhecidos pelo povo para permitir visitas, dentre outras situações.

Por fim, observa-se que tanto o Judiciário quanto o Executivo, principalmente as autoridades prisionais, identificam, muitas vezes sem sequer lhes perguntar, uma pessoa indígena meramente como parda, sem a devida anotação de seu povo. Ainda, quando as autoridades fazem uso do critério autodeclaratório, é preciso levar em consideração que muitas pessoas indígenas, mesmo quando perguntadas, não se identificam como tal por não conhecerem seus direitos e/ou terem receio de serem discriminadas.

Ter uma dimensão mais precisa da quantidade de pessoas indígenas que estão encarceradas no Brasil, assim como a quais povos essas pessoas pertencem, seus costumes, seus contextos locais e as condições dessas prisões são alguns dos caminhos aqui propostos para que possamos compreender a relevância de aplicação massiva de medidas desencarceradoras às pessoas indígenas e, simultaneamente, elaborar estratégias para políticas públicas nacionais e locais com o propósito de prevenir o aprisionamento dessas pessoas e viabilizar seus direitos tradicionais e ao Bem Viver.

Fonte:  Site Pastoral Carcerária JF

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

PARA SEMPRE NA MEMÓRIA: O CARANDIRU NÃO ACABOU

 O grito de Adalberto e de seus 110 companheiros massacrados pelo Estado no dia 02 de outubro de 1992, na  Casa de Detenção de São Paulo, continua ecoando nos arredores dos carandirus brasileiros. A cada grade de ferro que se ergue, um novo capítulo de sangue se levanta sobre as páginas dessa duradoura história de massacres e mortes. 

Contaminação pandêmica, Papuda, Urso Branco, Benfica, Pedrinhas, Monte Cristo, Alcaçuz, Manaus, Altamira, Carandiru e tantos outros massacres e torturas são traços gangrenados dessa memória que machuca, que corrói e que não se esquece jamais.

O palco das chacinas nacionais continua vívido no peito das mães e dos familiares que tiveram seus entes queridos arrancados e extirpados pela força truculenta do Estado.

A escritora Deise Benedito relata sua experiência ao entrar no Carandiru após o massacre: “Entrei. O cheiro de sangue era muito forte. Nos dividimos e fui para o setor administrativo do Pavilhão 09. Os presos lavavam o chão, e o sangue vinha junto.  Choravam copiosamente, assustados, amedrontados. Eu fiquei  no  setor administrativo, pois o pavilhão estava todo cheio de água e sangue (…) Levei para a Vara de Execução Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, já no final da tarde, a lista de alguns presos mortos. Consegui levantar as execuções, e assim descobri que a maioria dos que foram solenemente assassinados tinham entre 18 e 29 anos, a maioria sem condenação. Hoje se fala em hipencarceramento. Naquela data, a  Detenção  de São Paulo tinha mais de 7 mil presos, tendo a capacidade para 1.400. Tudo muito muito duro, maioria jovens e negros. Foi tudo muito cruel. (…) Realmente o Carandiru não acabou. Estão mais sofisticadas as formas de massacre. A Covid-19 se encarrega de transformar as celas em câmaras de gás.  Os nossos presídios são, infelizmente, o Carandiru nosso de cada dia. Lamentavelmente”.

Em Altamira, quando a coordenação nacional da PCr se fez presente após o massacre, uma familiar nos disse: “Os nossos filhos são maltratados, todos os dias eles apanham (…) tem gente com tuberculose, tem gente com pneumonia, tem gente com várias doenças, todo mundo junto. Nossos filhos estão sendo humilhados, nossos filhos estão comendo comidas estragadas, cheias de caramujos, cheias de pelos de gato. Os nossos filhos estão sem água, eles tomam água do vaso sanitário. Os nossos filhos estão cheios de feridas, cheios de bactérias, a gente não pode entrar com medicamento porque eles embargam, achando que a gente está entrando com droga. Essa mãe que perdeu o seu filho pelo Estado… e o que o Estado vai fazer por essa mãe? (…) Que o Estado venha parar de tirar os nossos filhos, porque nossos filhos têm voz. Eu vou clamar até o fim da minha vida: eu quero justiça”. 

E assim, todos os dias, a cada segundo, um novo Carandiru acontece. A prisão é crime permanente contra a humanidade majoritariamente jovem, negra e pobre. Mas tem que acabar. Para sempre na memória: 02 de outubro não acabou.


Fonte: Pastoral Carcerária Nacional

terça-feira, 6 de outubro de 2020

PAPA FRANCISCO CRITICA NEOLIBERALISMO E “VÍRUS DO INDIVIDUALISMO” EM NOVA ENCÍCLICA

 A terceira encíclica escrita pelo Papa Francisco foi divulgada neste domingo (04) pelo Vaticano. O documento intitulado Fratelli tutti (“Todos irmãos” em italiano), é fruto de reflexões do pontífice em meio à pandemia da covid-19 e apresenta duras criticas às políticas neoliberais e ao individualismo.

Com elevado tom político, Papa Francisco abordou temas sociais e condenou o “dogma neoliberal”. “A especulação financeira com o lucro fácil como objetivo fundamental continua provocando estragos”, escreveu, acrescentando que “o vírus do individualismo radical é o vírus mais difícil de derrotar”.

Conforme escreveu o pontífice, “a fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos”.

:: Leia a encíclica na íntegra em português ::

Papa Francisco criticou ainda a atuação internacional no combate à covid-19, que expôs, de acordo com ele, as “falsas seguranças” do mundo globalizado. “Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade”.

A encíclica é dividida em oito capítulos nos quais o papa defende a fraternidade universal e o direito de todo ser humano de viver “com dignidade e desenvolver-se plenamente”.

“É possível aceitar o desafio de sonhar e pensar em outra humanidade. É possível desejar um planeta que assegure terra, teto e trabalho para todos”, defendeu.

Ao incentivar a chamada cultura do encontro, o papa chegou a citar o Samba da Bênção, de Vinícius de Morais. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”, registrou.

O documento, que foi divulgado no dia de São Francisco de Assis, inspiração para o nome de Jorge Bergoglio como pontífice, também defendeu o direito às migrações, cobrou mudanças na Organização das Nações Unidas (ONU) e na ordem do sistema financeiro mundial como um todo.

Outras duas encíclicas foram assinadas anteriormente: a Lumen Fidei (“Luz da Fé”) e Laudato Si (“Louvado Sejas”), a primeira na história da Igreja Católica dedicada exclusivamente ao meio ambiente.